O
SOLA SCRIPTURA NA REFORMA PROTESTANTE.
Rev. João Ricardo Ferreira de França.
Antes de fazermos uma análise
bíblico-teológica da doutrina do Sola
Scriptura se faz necessário analisá-la historicamente dentro da tradição
protestante. Pois, todos nós sabemos que “Sola
scriptura é um dos princípios fundamentais da reforma Protestante”[1]. É claro que este
princípio estivera, de forma embrionária, nos pré-reformadores, de modo
particular em John Wycliffe e John Huss, este último apelava sempre para as
Escrituras e chegou a dizer aos seus oponentes: “Mostrem-me com base nas
Escrituras, e eu me arrependerei e voltearei atrás.”[2] Então, a doutrina da
suficiência da Palavra de Deus foi bem mais desenvolvida pelos reformadores. E
dentro destas perspectivas procuraremos apresentar uma breve resenha histórica
de como isso se projetou na monumental doutrina que conhecemos.
I – O QUE É O SOLA
SCRIPTURA?
A
resposta mais simples e clara que podemos oferecer a esta pergunta é que o “Sola Scriptura ensina que a Bíblia
regula a vida em sua totalidade”[3] O Dr. Paulo Anglada nos
diz que com a “redescoberta da doutrina da suficiência das Escrituras, os reformadores
libertaram o povo de Deus das doutrinas e práticas impostas às
consciências por autoridade meramente
humana”[4].
Ou seja, o conceito que a doutrina
encerra é a de que somente as escrituras podem ser senhora da consciência dos
homens! Todavia, uma definição ampla e clara do que a doutrina significa é
apresentada por Brain M. Schwertley quando diz:
Dito
resumidamente, a doutrina protestante do sola scriptura ensina que a Bíblia (os 66 livros do Velho e do Novo
Testamento) é a divina Palavra inspirada
de Deus, e, portanto, infalível e absolutamente autoritativa para todos os
assuntos referentes à fé e à vida. Como palavra escrita de Deus contém tudo o
que existe da revelação sobrenatural de Deus, e porque cessaram todas as formas
de revelação direta (com a morte dos apóstolos e o fechamento do cânon), apenas
e somente a Bíblia é a autoridade da igreja. Porquanto a Escritura é clara
(i.e., todo ensino necessário à salvação, fé e vida, são facilmente
compreendidos pelas pessoas comuns) não
há necessidade de quaisquer fontes adicionais de autoridade para interpretar a
Bíblia infalivelmente para a igreja. A igreja (sejam ou não papas, cardeais,
bispos, pais da igreja, concílios eclesiásticos, sínodos ou congregações) não
tem autoridade sobre a Bíblia, mas a Escritura autoautenticada tem autoridade
absoluta sobre a igreja e sobre todos os
homens. Por ser o que a Bíblia é (como já visto), o mister da igreja é puramente ministerial e proclamador.
Todos os homens são proibidos de
acrescentar ou subtrair algo das Sagradas Escrituras, seja pelas tradições humanas, ou pelas assim
chamadas novas revelações do Espírito,
ou pelos decretos de concílios e sínodos. A Bíblia é suficiente e perfeita e
não necessita de quaisquer acréscimos humanos. Além do que, apenas aquilo que é ensinado na Escritura pode
ser usado para tornar cativas as
consciências dos homens. [5]
II –
O SOLA SCRIPTURA REDESCORBERTO: MARTINHO
LUTERO - “MINHA MENTE ESTÁ CATIVA À PALAVRA DE DEUS”.
Martinho Lutero “nasceu no dia 10 de
novembro de 1483 na pequena cidade de Eislebn. Seu pai, de origem camponesa
livre, emigrou de muito longe para essa cidade” também somos informados que o
seu pai era minerador “e que chegou a ficar consideravelmente rico”.[6] Lutero fora destinado ao direito, este era o
plano de seu pai, mas “voltou-se para o mosteiro, no qual, após muitas lutas,
desenvolveu uma nova compreensão de Deus, da fé e da igreja”[7].
Lutero eclodiu a Reforma Protestante
quando afixou as suas teses na igreja de Wittemberg; a sua série de estudos
teológicos na Carta de Paulo aos romanos o levou para a doutrina do Sola Fide – somente a fé. Juntamente com seus ataques as indulgências o
levaram para Leipzig em Julho de 1519[8].
No debate que tive lugar em Lipizig
Matinho Lutero teve como seu opositor o grande historiador da Igreja Romana
John Eck. Este último insistira que Lutero estava defendo as ideias de um
herege para a Igreja que era o John Huss. Matinho Lutero retrucava de dizia que
não! Depois, de um breve intervalo, Lutero foi estudar as ideias de Huss e
ficou surpreso, pois, o que ele estava ensinando era exatamente o que Huss
havia também ensinado e a igreja no Concílio de Constança havia condenado tal
ensino. [9]
Lutero chegou a declarar que as
Escrituras eram “normas, normans (norma
determinadora)”[10]
e por isso, ele declarou que a “sua consciência estava cativa à Palavra de
Deus”, isso na Dieta de Worms, quando questionado se iria renunciar seus
escritos e tratados, então ele prosseguiu dizendo:
Amenos
que ele fosse convencido pela Escritura e pela razão clara, que ele não
aceitava a autoridade dos papas e concílios, visto que eles se contradiziam uns
aos outros, ele não abjuraria nada. Fazer isso não seria correto e nem seguro.
E ele acrescentou: ‘Que Deus me ajude. Amém!’. Em outra versão dessas palavras
finais, que pode ser acurada, nós ouvimos dizer: ‘Aqui permanece. Eu não posso
fazer diretamente’. Ele falava em alemão e, quando questionado, repetia sua
afirmação latim.[11]
Com essa declaração Lutero surge o
conceito da reforma protestante conhecido como o Sola Scriptura. Deve-se ressaltar que a doutrina do somente as
Escrituras conforme ensinada por Lutero consistia na “ideia segundo a qual as
Escrituras são a única autoridade para o pecador procurar a salvação[...]”[12], em outras palavras, a
doutrina da suficiência das Escrituras não afetara a sua concepção eclesiástica
e nem litúrgica; todavia, percebe-se que foi graças a esta concepção que a
Escritura tornara-se a pedra de toque para a avaliação de toda a doutrina.
III
– JOÃO CALVINO E O SOLA SCRIPTURA.
Existe um personagem na
Reforma Protestante que tem instigado a muitos debates entre os eruditos em
história, filosofia, educação e homilética – João Calvino certamente é o homem
que é querido por uns e odiado por outros. Um escritor captou bem esta concepção
quando escreveu:
Poucas
pessoas na história do cristianismo têm sido tão supremamente estimadas ou tão
mesquinhamente desprezadas quanto João Calvino. A maioria dos cristãos, dentre
os qual grande parte dos protestantes,
conhece apenas dois aspectos a respeito
dele: acreditava na predestinação e ordenou que Serveto fosse queimado
vivo. Desses dois fatos, ambos verdadeiros, emerge a caricatura usual de
Calvino como o grande inquisidor do protestantismo, o tirano cruel de Genebra,
uma figura rabugenta, rancorosa e completamente desumana. [13]
João Calvino
nasceu em Noyon, na Província da Picardia, na França, na fronteira dos Países
Baixos, em 1509. Seu pai, Gerard Cauvin, era advogado que trabalhou para o
cônego desta cidade, e sua mãe, Jeanne de La Franc, era uma mulher muito piedosa.
Batizado na tradição católica teve como padrinho Jean Vatine, cônego da
Catedral em Noyon. Foi enviado para estudar Teologia em Paris, onde estudou
latim e humanidades no Collège de la Marche e teologia no Collège de Montaigu,[14]. Ele era conhecido como “O
professor de Sagradas Letras”[15].
Um mestre singular, um grande pregador. Era um homem dedicado aos estudos, e
muitos no seu tempo “o tinham já em admiração, pela erudição e zelo que nele se
percebiam”[16]
A conversão de
Calvino se deu em 1533, provavelmente sob a influência do seu primo Robert
Olivétan, e a respeito deste fato disse:
Deus, pela
secreta orientação de sua providência, finalmente deu uma direção diferente ao
meu curso. Inicialmente, visto eu me achar tão obstinadamente devotado às
superstições do papado, para que pudesse desvencilhar-me com facilidade de tão
profundo abismo de lama, Deus, por um ato súbito de conversão, subjugou e
trouxe minha mente a uma disposição
suscetível, a qual era mais empedernida em tais matérias do que se
poderia esperar de mim naquele primeiro período de minha vida. Tendo assim
recebido alguma experiência e conhecimento da verdadeira piedade, imediatamente
me senti inflamado de um desejo tão intenso de progredir nesse novo caminho
que, embora não tivesse abandonado totalmente os outros estudos, me ocupei
deles com menos ardor.[17]
O reformador
João Calvino teve grande progresso na tarefa da Reforma em Genebra porque as suas “crenças sobre a
Palavra de Deus e a centralidade das Escrituras na vida da Igreja definiam sua
pregação muito antes de ele levantar-se para expor a Palavra.”[18].
Timothy George assegura que “a grande realização de Calvino foi tomar os conceitos
clássicos da Reforma (sola gratia, sola
fide, sola scriptura) e dar-lhes uma exposição sistemática, que nem Lutero e
nem Zuínglio jamais fizeram,
adaptando-os ao contexto civil de Genebra”.[19]
Deve-se entender que nesta
época havia uma crise completa de autoridade na sociedade da época, e a Igreja
que era orientadora dos padrões sociais e religiosos estava sem autoridade, o
Romanismo da Igreja havia sido questionado de forma magistral pela Reforma
Protestante. Então onde encontrar uma fonte de autoridade e que fosse suficiente
para oferecer respostas às ansiedades e indagações de uma época tão conturbada?
Nos dias de Calvino, o principal assunto de
controvérsia era a autoridade da igreja. As tradições da igreja, os decretos do
Papa e as decisões dos conselhos
eclesiásticos precediam a verdade bíblica. Entretanto, Calvino permaneceu
firme, sobre a pedra angular da Reforma - Sola Scriptura, ou
"somente a Escritura". Ele acreditava que as Escrituras eram o verbum
Dei - a Palavra de Deus - e que somente ela podia regulamentar a vida da
igreja, e não papas, conselhos ou tradições. Sola Scriptura identificou
a Bíblia como autoridade única sobre a igreja de Deus, e Calvino abraçou
essa verdade de todo o coração,
insistindo que a Bíblia é a competente, inspirada, inerrante e infalível Palavra
de Deus.[20]
Timothy George lembra-nos que
“Calvino acreditava que a Bíblia era a ‘escola do Espírito Santo’. Seus
escritores foram instrumentos, órgãos, amanuenses do Espírito Santo.”[21] O próprio Calvino ensina,
comentando Salmo 19.7, que a Palavra de Deus revelava o pleno conhecimento de
Deus: “o salmista agora se volve para os judeus, a quem Deus havia comunicado
um conhecimento mais pleno por meio de sua palavra”.[22]
[1]
SCHWERTLEY, Braian. M. Sola Scriptura e
o Princípio Regulador do Culto. Tradutor: Marcos Vasconcelos. São Paulo:
Editora os Puritanos, 2001, p.12..
[2]
Apud, BEEKE, Joel. R. Vivendo para a Glória de Deus – Uma
Introdução à Fé Reformada. Tradutor: Francisco Wellignton Ferreira. São
Paulo: Editora Fiel, 2010, p. 149.
[3] SCHWERTLEY, Braian. M. Sola Scriptura e o Princípio Regulador do Culto. Tradutor: Marcos
Vasconcelos. São Paulo: Editora os Puritanos, 2001, p.12
[4]
ANGLADA, Paulo R. B. Sola Scriptura – A
Doutrina Reformada das Escrituras. São Paulo: Editora Os Puritanos, 1998,
p.73.
[5]
SCHWERTLEY, Braian. M. Sola Scriptura e
o Princípio Regulador do Culto. Tradutor: Marcos Vasconcelos. São Paulo:
Editora os Puritanos, 2001, p.1.
[6]
CAIRNS, Eearle. E. O Cristianismo
através dos Séculos – Uma História da Igreja Cristã. Tradução: Israel Belo
de Azevedo; Valdemar Kroker. São Paulo: Vida Nova, 2008, p. 259.
[7]
GEORGE, Thimothy. Teologia dos
Reformadores. Tradução: Gérson Dudus; Valéria Fontana. São Paulo: Vida
Nova, 1994, p. 53.
[8]
Ibid, p.81.
[9]
GONZÁLEZ, Justus L. Uma História
Ilustrada do Cristianismo. Tradução: Itamir Neves de Souza. São Paulo: Vida
Nova, 2011, p.38.
[10]
GEORGE, Thimothy. Teologia dos
Reformadores. Tradução: Gérson Dudus; Valéria Fontana. São Paulo: Vida
Nova, 1994, p. 82.
[11]
LATOURETTE, Kenneth Scott. Uma História
do Cristianismo, Volume 2. Tradução: Heber Carlos de Campos. São Paulo: Hagnos 2006, p.969-670.
[12]
CAIRNS, Eearle. E. O Cristianismo
através dos Séculos – Uma História da Igreja Cristã. Tradução: Israel Belo
de Azevedo; Valdemar Kroker. São Paulo: Vida Nova, 2008, p. 260.
[13]
GEROGE, Timothy. Teologia dos
Reformadores.Tradução: Gérson Dudus e Valéria Fontana. São Paulo: Editora
Vida Nova, 1994, p.167.
[14]
FERREIRA, Wilson de Castro. Calvino:
Vida, Influência e Teologia, São Paulo: Luz Para o Caminho,1998, p. 41.
[15]
HALSEMA, Thea B. Von. João Calvino Era Assim. São Paulo: Editora Os Puritanos, 2009, p.68.
[16]
BEZA, Theodoro de. A Vida e a Morte de
João Calvino. Tradução: Waldyr Carvalho Luz. São Paulo: Editora Luz para o
Caminho, 2006, p.11.
[17]
CALVINO, João. Comentário sobre o Livro
de Salmos, Volume 1. Tradução: Valter Graciano Martins, São Paulo: Editora
Fiel, 2009, p.31.
[18]
LAWSON, Steven. A Arte Expositiva de João
Calvino. Tradução:Ana Paula Eusébio Pereira. São Paulo: Editora Fiel,2008,
p.33-34.
[19]
GEORGE, Timothy. Teologia dos Reformadores.
Tradução: Gérson Dudus e Valéria Fontana. São Paulo: Editora Vida Nova, 1994,
p.167.
[20]
LAWSON, Steven. A Arte Expositiva de
João Calvino. Tradução:Ana Paula Eusébio Pereira. São Paulo: Editora
Fiel,2008, p 34.
[21]
GEORGE, Timothy. Teologia dos Reformadores.
Tradução: Gérson Dudus e Valéria Fontana. São Paulo: Editora Vida Nova, 1994,
p.167; “Por que a Escritura é a escola do
Espírito Santo na qual nada tem deixado
coisa alguma que não seja necessária e útil conhecer, nem muito menos se ensina
mais do que é necessário saber.” (CALVINO, Juan. Instiución de La Religión Cristiana. Tradução: Cipriano de
Valera. Barcelona:1999, Livro III,
Capítulo 21, seção 3.)
[22]
CALVINO, João. Comentário sobre o Livro
de Salmos, Volume 1. Tradução: Valter Graciano Martins, São Paulo: Editora
Fiel, 2009, p.379.